Começa sempre da mesma maneira.
“Oh menina,
gabo-lhe o gosto…!”
“Cala-te,
sargenta”, susurro dentro da minha mente. Não me fascinam bebés fofinhos nem
salas de parto menos fofinhas, com gente a dar à luz e a borrar-se ao mesmo tempo, não te posso dizer tal blasfémia, mas é assim,
nem me apetece ficar ainda mais assustada com o momento de trazer o meu
hipotético bebé fofinho ao mundo. Gente a bater com a cabeça nas paredes não me
faz confusão, principalmente porque desconfio que fora do ecrâ dos tv movies
não haja muita gente a bater realmente com a cabeça nas paredes. Assustam-me
mais os loucos que se fazem de sãos e chamam loucos aos outros para desviar as
atenções do que os que estão assumidamente confinados entre quatro paredes. O gajo
que mata a tiro a família toda nos subúrbios nunca é descrito pelos vizinhos
como maluco. Era sempre um gajo normal. São todos gajos normais.
“Bom, vá lá.
O paciente é praticamente da sua idade. Foi internado na sequência de uma
overdose de benzodiazepinas, tentativa de suicidio apesar de ele negar. Não
está colaborante e não quer aceitar ajuda, mas está perfeitamente consciente e
não é fácil lidar com ele. A enfª Silva vai consigo, ele costuma ser muito
insolente, tenha cuidado.”
Esta mulher fala como se tivesse engolido a folha de registos. Sorrio à Silva, que
revira os olhos e abre a porta, diz que vai fumar um cigarro e que vem já, eu
que não me assuste que ele pesa menos de 50kgs, eu dou conta dele. Na pior das
hipóteses tenta apalpar-me.
Espreito
pela porta aberta, e uma gargalhada ecoa pelo quarto triste. “Mary Jane!!!
Hahaha olha para ti! Que merda de bata é essa? Isso não é nada sexy!”. Congelo.
Que porra é que eu faço agora? Porque é que me havia de calhar este, de entre
todos os loucos e demasiado sãos que me podiam vir parar às mãos? Dou um passo
atrás e fico a olhar para ele como se eu fosse uma nova-rica cujo jipe avariou
no meio da selva africana e tivesse o leão, imponente, a olhar para mim de
olhos a brilhar, antecipando a refeição. Nem 50kgs tem, de facto. A pele
acizentada, os olhos encovados e as bochechas entraram-lhe pela cara adentro.
Parece a imagem final daquelas aplicações manhosas para iphone em que nos
envelhecem 50 anos. Tenho pena, por um momento, e depois os meus olhos
encontram os dele. Sinto frio, o mesmo frio de sempre ao perceber o brilho
maléfico do costume. Não digo nada, não porque não consiga falar, mas porque
não há nada para dizer. O desfecho era mais que previsível, a presença daquele
olhar frio naquele quarto mais frio ainda era uma questão de tempo, tal como a
sua eventual saída com um carimbo a dizer “caso perdido” (se ele existisse),
nova estadia, provavelmente a última, até que aqueles olhos não voltem mais
àquele quarto, nem a nenhum. Não digo nada, já disse tudo, demasiadas vezes, demasiado tempo, tendo sempre como resposta uma vulgaridade e uma gargalhada. Não era negação, era admissão e indiferença. A única pessoa com quem vale a pena falar é com o
médico, mas não me compete. Não tenho voz e mesmo que a tivesse não me é
permitido fazer autópsias. E se fosse, dir-me-iam que o paciente estava vivo.
Não está. Não está há muito tempo. Morreu de ódio, primeiro a ele próprio,
depois a todos os outros, e depois ainda mais a ele próprio. A degradação
física é post-mortem, retardada pelos comprimidos cor-de-rosa, mas inevitável. “Mj,
o gato comeu-te a língua? És o meu anjo da guarda, vai comprar um JP para a
gente, bora beber. Não acredito que ainda estás fodida comigo!”.
“Isto está
errado. Deontologicamente”, gaguejo, e dou meia volta, rodando a chave na fechadura e confirmando 3 vezes, enquanto sucessivos “Mary Janeeeee” escapam através da
madeira . Vou à procura da sargenta, digo-lhe que conheço o paciente e que não
acho que contactar com ele seja terapêutico, e vou fumar um cigarro lá fora.
Uma voz
abafada surge “Menina, tem lume?”. Estendo-lhe o clipper com um meio sorriso.
Impecavelmente vestida, quase parecendo mais nova do que é, um tremor
ligeiríssimo espalha-se-lhe das pernas até aos cantos dos lábios. “As visitas
são às 16h?”, só para fazer conversa, porque deve estar farta de saber.
Respondo que sim, e fico a olhar para as nuvens lá ao fundo, que ameaçam chuva.
Apetece-me perguntar-lhe se a mancha esquisita do sofá da sala chegou a sair,
apetece-me pedir desculpa por ter queimado um tacho uma vez. Apetece-me dizer
que a culpa não é dela, que pode não ter sido uma mãe perfeita, mas ninguém o
é, apetece-me dar-lhe os pêsames por ter perdido o filho sem o perder, mas não
quero que ela pense que eu sou uma paciente com uma bata, a brincar às enfermeiras. Aliso a
bata, esboço novo meio sorriso, e volto para dentro, feliz por ter sobrevivido
(quase) sem sequelas, por não ser eu dentro de um quarto triste, morta sem
estar enterrada. Apetece-me reunir os outros malucos todos e dizer-lhes que
mais vale serem malucos com alma do que terem-na perdido como o gajo do quarto
13, mas não quero chumbar no estágio.
À noite no
café, perguntam-me “Então, os malucos assustaram-te muito?”.
“Nem imaginas…”.