05 November, 2012

De repente cheira a autocarro. Dizem que o cérebro memoriza melhor os cheiros do que qualquer outra coisa. Que automaticamente associamos imagens e momentos a um certo odor. É por isso que nunca mais vou sentir o perfume do Boss Woman sem me lembrar de cabelos à foda-se, e que quase vomito com o cheiro a tinta fresca.
 

Cheira a autocarro por razão nenhuma. Nem sei a que é que os autocarros cheiram, de facto. Mas era aquele cheiro, porque me lembrei instantaneamente de visitas de estudo, desde a primária, em que ficava lá à frente com os professores a fazer mil e uma perguntas, até ao secundário, em que ia lá para trás com os miúdos fixes jogar ao verdade ou consequência, um sem-fim de verdades e gargalhadinhas que chamavam sempre a atenção aos professores para o que se estava ali a tentar passar.
 

Cheirava a autocarro e eu estava sentada à mesa com o meu amigo, numa daquelas conversas sem sentido em que descobrimos pólvoras e verdades universais nunca dantes reveladas, para depois concluirmos que estamos a gritar eureka sobre um tema que não interessa a ninguém. Ele vasculhava obcessivamente a caixa de mensagens do telemóvel da namorada, à espera de se desiludir por não se ter enganado. Eu fumava o caramelo de um charro, ouvindo as gotas de chuva assumindo o papel de pedras contra o telhado de zinco. Tínhamos de ir embora dali a 10 minutos, ele para ir buscar a não-adúltera de moto, e eu para empurrar a bicicleta empenada até casa, que era o meu plano original antes da chuva e do caramelo do charro.

Enquanto fazia uma força sobrehumana para me levantar da cadeira - juro que ela tinha criado tentáculos e me agarrava sem espaço de manobra, um tipo de Kraken de plástico e ferro - pensava "This is it. Este é um dos últimos momentos. Estamos aqui secos e quentinhos e daqui a breves instantes vamos estar lá fora encharcados, a correr como baratas tontas a tentar chegar a algum porto de abrigo antes de enregelarmos os ossos. É um momento cruel, saber que apenas dura o tempo suficiente para pensarmos nele e desaparecer é cruel. Tal como a vida, em que estamos apenas a tentar encontrar uma qualquer felicidade antes do fim inevitavél. É agridoce estar aqui a querer desesperadamente agarrar-me a este momento, sendo a única razão para o querer preservar o seu fim anunciado. Afinal, não estava errada. Momentos. São tudo o que temos. Quereremos durabilidades impossíveis, queremos felicidades ininterruptas. Mas só temos fragmentos de tempo. Até para respirar."
 

Culpo a minha mente voadora por estes pensamentos. Já os tinha metido no caixote do lixo há muito tempo. Agora fui lá buscá-los, envolvidos em comida podre. Talvez eles não pertençam no lixo comum. Talvez os possa reciclar. Usava-os como desculpa para o que me bastava mas não me preenchia, e nunca os vi como uma fonte de pensamento positivo, uma nova forma de ver o mundo. Os momentos, a ser tudo o que temos, não bastam. Não se ficarmos lá amarrados, como eu à cadeira.
 

Chego a casa encharcada mas feliz. Este momento vai durar mais do que um momento. Ainda cheira a autocarro. Singing in the rain.