24 April, 2008

shortcomings

É domingo. Domingo à tarde.
Chove lá fora e na janela da tua webcam. Pareces amarelado, mas não deves estar doente. Estas coisas electrónicas ainda não são de fiar. Com a voz entrecortada por ruídos metálicos vais-me contando as últimas novidades. A Dª Georgina sobreviveu ao 3º ataque cardíaco, o último casal de solteiros da aldeia casou-se finalmente. Agora só restas tu. Ficaste aí tempo demais, feito parvo, e agora os veteranos não te deixam ir embora como os outros todos. Ai de ti se desertares também, faz-te mas é homem e arranja uma mulher roliça que te dê muitos varões fortes, senão a aldeia é mais uma condenada à extinção. E isso não pode ser.
Peço para mandares um beijinho à Dª Georgina, e as melhoras, parece-me ver-te franzir o sobrolho num ângulo esquisito. Deve ser da webcam. Dizes que não gostas da Dª Georgina porque ela está sempre a rir histericamente. As pessoas que riem histericamente ou é porque são felizes ou porque querem fingir que são. As pessoas que são felizes são irritantes. As pessoas que querem fingir que são felizes são estúpidas.
A Dª Georgina é estúpida porque não é feliz. O marido deixou-a por uma matrafona de uma aldeia vizinha dois meses depois de os únicos filhos terem morrido num terrível acidente de motorizada. Tontos de bagaço contra um chaparro. Dizem que não se distinguiam da árvore quando os bombeiros lá chegaram. E dizem que toda a aldeia se riu no funeral.
Tu dizes-me que eu é que bem podia ir para lá e revolucionar aquilo tudo. Tínhamos era de nos casar, senão davam cabo de ti, mas preferias casar-te comigo do que com a Martinha da aldeia vizinha, que tem bigode e bate nos rapazes. Rio-me da proposta. Seria muito mais simples viver aí, já começo a ficar saturada da feira de vaidades e das falsas aparências da metrópole. E casar contigo não seria mau de todo, suponho. Mas tenho de recusar. Nunca iria dar certo e na aldeia os divórcios não são vistos com bons olhos. Acho que te ias entender melhor com a Martinha.
Eu rio-me histericamente quando estou triste.

11 April, 2008

Hoje o homem da lua chorou. O homem da Terra reprimiu mais uma lágrima.

A mim não me apetece chorar. Talvez me apeteça chorar por não me apetecer chorar, mas não o suficiente para de facto o fazer. Não tenho metáforas para descrever a sensação de liberdade que me deu dizer-te adeus. Tinha medo que doesse demais. E doeu um bocadinho, mas é aquela dor de quando damos ao nosso sobrinho o nosso brinquedo preferido de criança. Nunca deixamos de estar apegados a ele, mas só quando temos a maturidade de guardar apenas as boas recordações que ele nos traz e perceber que somos velhos demais para brincar com ele é que o conseguimos largar.

Não sei porque te comparei a um brinquedo. Estou a escrever em catadupa, porque estes sentimentos nunca ficam o tempo suficiente para os poder tentar transcrever mais tarde. A 1ª comparação que me ocorreu foi esta. Talvez por teres sido também uma parte da minha fase de transição. Algo que me acompanhou no meu crescimento, que também me ajudou a crescer. Que seria de mim se não tivesses existido? Seria ainda irracional demais. Sonhadora demais. Ingénua demais. Não estou a dizer que tenha perdido todas essas qualidades, ou defeitos, se lhes quiseres chamar assim. Apenas lhes retirei o excesso. Ensinaste-me que os contos de fadas existem. O "felizes para sempre" é que nem sempre.

Hoje consigo olhar para tudo isto sem amargura. Sem raiva. Com alguma pena, é certo (éramos tão melhores do que isto...), mas sem querer bater-te(vos). E principalmente, sem querer ter-te de novo. É tarde demais. Já o tinha percebido. Mas antes sabia que o era apenas da tua parte. Não porque fosse, de facto. Apenas o era porque exigia mais força e mais loucura do que as que tu conseguias ter. Tinha de haver uma revolução. E, como dizias, querias assistir à revolução, não ser parte dela. Sempre foste assim.
Desta vez é tarde demais. Mas porque eu quero. Porque consigo. Porque não sou, de facto, tão especial como queria ser. Sou mais especial que ela (mas também, todas nós somos. Ela é nada). Mas não é que eu não valha a pena. Nós é que não valemos.

08 April, 2008

all-in my heart

Como é possível levarmos uma vida a construir uma teoria que é derrubada no preciso instante em que chegamos à conclusão de que é perfeita, lógica e com uma margem de erro mínima?

Não tenho muito a dizer sobre este assunto, porque para falar dele tenho de pensar, e pensar implica recordar. E recordar implica tornar de alguma forma mais real. Remoê-lo, dissecá-lo, analisá-lo até à loucura para não chegar a conclusão nenhuma. Eu já tinha recordado o suficiente tudo o que havia para recordar, e agora insistes em jogar a última cartada. Já não me apetece jogar a isto. Quando eu aprendo finalmente a jogar este teu jogo, as regras mudam. Não sou um jogador, sou o peão do jogo.

Neste jogo as acções contam mais do que as palavras, as palavras contrariam as acções. Raramente estão em sintonia, e fico na dúvida sobre qual valorizar mais. Os teus gestos matam-me, as tuas palavras torturam-me. Não consigo adivinhar se tens ou não bom jogo. Dizes que sim. Sorrio presunçosamente a olhar para as minhas cartas. Pode ser que caias. Resulta. Franzes o sobrolho às cartas e desistes. Sais da mesa e levas o dinheiro que te resta. No fim, quando viramos as cartas, gritas "merda! era meu!" e dás um soco na mesa. Eu tinha-te avisado que jogo duplo não funciona com ninguém a não ser comigo. Mas parece que começas a aprender. Já sabes fazer bluff, só é pena que em vez de seguires o instinto, jogues sempre pelo seguro.
- Arrisca!- incito eu.
- Não posso - choras.
- Não podes ou não queres?
- Não posso. Não posso mesmo.
Não querer é vontade própria. Não poder é fraqueza. E a tua fraqueza controla-te, aprisiona-te, faz-te mal. Sempre foi assim. A tua fraqueza é feia para mim. Para ti é irresistível. A tua fraqueza tem forma de mulher.

Mal sabe ela que está a perder terreno. Mas ela que não se preocupe. Sempre gostaste mais dela.

Fazes sempre fold.
Eu sou mais all-in.

Pesadelo Cor-de-Rosa

Hoje tive um sonho estranho. Estávamos num sítio lindo, estupidamente lindo, como aquelas quintas onde se fazem casamentos e onde é tudo verde e florido, e com caminhos de pedrinhas às cores, e bancos brancos para nos esticarmos ao sol. Era um sítio tão bonito que chegava a parecer artificial. Pensando bem, acho que estávamos mesmo num casamento. Havia um salão com tectos de vidro, um buffet enorme ao centro, e as pessoas dançavam e riam em fato de gala.

Lá estávamos, os quatro. Os melhores amigos do Mundo. O número perfeito. Todos reunidos naquela amostra de paraíso, a rir alto e a torrar ao sol. Já não gosto de triângulos. Não são confusos o suficiente. Agora prefiro quadrados.


Hora do jantar/ copo de água: sentaram-nos na mesa das crianças, e no fim mandaram-nos jogar ao jogo das cadeiras. Eu não quis, éramos um quadrado unido e entre nós não devia haver competições nem divisões. O jogo das cadeiras é o equivalente infantil da luta pela sobrevivência e do individualismo. Sempre gostei mais de jogos de equipa. Mas os senhores da festa (casamento?) não nos deram hipóteses. A sociedade não gosta de quadrados e a gente madura não os tolera. Os adultos não têm quadrados. Triângulos, talvez. Quadrados não.

O jogo chegou à parte final. Desfez-se o quadrado e apenas restámos dois. Vencemos. Os adultos pôem a música novamente a tocar e mantém as duas cadeiras. Quando a música parar, vamos sentar-nos e seremos só nós. A ideia não me parece má. Respiro fundo, de olhos fechados, e sorrio. A música pára. Dou um passo em direcção à cadeira e caio. Vejo pernas a passar por cima de mim, vejo alguém a sentar-se na minha cadeira. Empurrou-me à má fé e sentou-se. E passou, literalmente, por cima.

Riem-se os dois, tu e ela. Abdicaste facilmente do nosso quadrado. Mas e daí, eu também. Nós ganhámos por alguma razão. Mas também não ligaste ao nosso círculo. Percebo-te. Afinal, isto é apenas um jogo. Que ganhe a melhor, é o que dizem. Fujo pelo salão, vou atrás dos outros perdedores, talvez possamos formar um triângulo outra vez. Já desapareceram. Foram para a mesa dos adultos, tal como tu e a intrusa.

Volto a sentar-me na mesa das crianças. Esta festa perdeu o interesse. Já não tenho com quem brincar.

[O que pensa disto, sr. Freud? Fossem todos os sonhos tão fáceis...]