27 November, 2013

The cuckoo that I used to love

Começa sempre da mesma maneira.

“Oh menina, gabo-lhe o gosto…!”
“Cala-te, sargenta”, susurro dentro da minha mente. Não me fascinam bebés fofinhos nem salas de parto menos fofinhas, com gente a dar à luz e a borrar-se ao mesmo tempo, não te posso dizer tal blasfémia, mas é assim, nem me apetece ficar ainda mais assustada com o momento de trazer o meu hipotético bebé fofinho ao mundo. Gente a bater com a cabeça nas paredes não me faz confusão, principalmente porque desconfio que fora do ecrâ dos tv movies não haja muita gente a bater realmente com a cabeça nas paredes. Assustam-me mais os loucos que se fazem de sãos e chamam loucos aos outros para desviar as atenções do que os que estão assumidamente confinados entre quatro paredes. O gajo que mata a tiro a família toda nos subúrbios nunca é descrito pelos vizinhos como maluco. Era sempre um gajo normal. São todos gajos normais.
“Bom, vá lá. O paciente é praticamente da sua idade. Foi internado na sequência de uma overdose de benzodiazepinas, tentativa de suicidio apesar de ele negar. Não está colaborante e não quer aceitar ajuda, mas está perfeitamente consciente e não é fácil lidar com ele. A enfª Silva vai consigo, ele costuma ser muito insolente, tenha cuidado.”
Esta mulher fala como se tivesse engolido a folha de registos. Sorrio à Silva, que revira os olhos e abre a porta, diz que vai fumar um cigarro e que vem já, eu que não me assuste que ele pesa menos de 50kgs, eu dou conta dele. Na pior das hipóteses tenta apalpar-me.

Espreito pela porta aberta, e uma gargalhada ecoa pelo quarto triste. “Mary Jane!!! Hahaha olha para ti! Que merda de bata é essa? Isso não é nada sexy!”. Congelo. Que porra é que eu faço agora? Porque é que me havia de calhar este, de entre todos os loucos e demasiado sãos que me podiam vir parar às mãos? Dou um passo atrás e fico a olhar para ele como se eu fosse uma nova-rica cujo jipe avariou no meio da selva africana e tivesse o leão, imponente, a olhar para mim de olhos a brilhar, antecipando a refeição. Nem 50kgs tem, de facto. A pele acizentada, os olhos encovados e as bochechas entraram-lhe pela cara adentro. Parece a imagem final daquelas aplicações manhosas para iphone em que nos envelhecem 50 anos. Tenho pena, por um momento, e depois os meus olhos encontram os dele. Sinto frio, o mesmo frio de sempre ao perceber o brilho maléfico do costume. Não digo nada, não porque não consiga falar, mas porque não há nada para dizer. O desfecho era mais que previsível, a presença daquele olhar frio naquele quarto mais frio ainda era uma questão de tempo, tal como a sua eventual saída com um carimbo a dizer “caso perdido” (se ele existisse), nova estadia, provavelmente a última, até que aqueles olhos não voltem mais àquele quarto, nem a nenhum. Não digo nada, já disse tudo, demasiadas vezes, demasiado tempo, tendo sempre como resposta uma vulgaridade e uma gargalhada. Não era negação, era admissão e indiferença. A única pessoa com quem vale a pena falar é com o médico, mas não me compete. Não tenho voz e mesmo que a tivesse não me é permitido fazer autópsias. E se fosse, dir-me-iam que o paciente estava vivo. Não está. Não está há muito tempo. Morreu de ódio, primeiro a ele próprio, depois a todos os outros, e depois ainda mais a ele próprio. A degradação física é post-mortem, retardada pelos comprimidos cor-de-rosa, mas inevitável. “Mj, o gato comeu-te a língua? És o meu anjo da guarda, vai comprar um JP para a gente, bora beber. Não acredito que ainda estás fodida comigo!”.
“Isto está errado. Deontologicamente”, gaguejo, e dou meia volta, rodando a chave na fechadura e confirmando 3 vezes, enquanto sucessivos “Mary Janeeeee” escapam através da madeira . Vou à procura da sargenta, digo-lhe que conheço o paciente e que não acho que contactar com ele seja terapêutico, e vou fumar um cigarro lá fora.

Uma voz abafada surge “Menina, tem lume?”. Estendo-lhe o clipper com um meio sorriso. Impecavelmente vestida, quase parecendo mais nova do que é, um tremor ligeiríssimo espalha-se-lhe das pernas até aos cantos dos lábios. “As visitas são às 16h?”, só para fazer conversa, porque deve estar farta de saber. Respondo que sim, e fico a olhar para as nuvens lá ao fundo, que ameaçam chuva. Apetece-me perguntar-lhe se a mancha esquisita do sofá da sala chegou a sair, apetece-me pedir desculpa por ter queimado um tacho uma vez. Apetece-me dizer que a culpa não é dela, que pode não ter sido uma mãe perfeita, mas ninguém o é, apetece-me dar-lhe os pêsames por ter perdido o filho sem o perder, mas não quero que ela pense que eu sou uma paciente com uma bata, a brincar às enfermeiras. Aliso a bata, esboço novo meio sorriso, e volto para dentro, feliz por ter sobrevivido (quase) sem sequelas, por não ser eu dentro de um quarto triste, morta sem estar enterrada. Apetece-me reunir os outros malucos todos e dizer-lhes que mais vale serem malucos com alma do que terem-na perdido como o gajo do quarto 13, mas não quero chumbar no estágio.
À noite no café, perguntam-me “Então, os malucos assustaram-te muito?”.

“Nem imaginas…”.