02 October, 2017

Diário de (mais) um dia (muito) mau

Novo médico. Nova prescrição. Será desta? O tempo voa e o relógio está em fast forward, não tens tempo para experimentar mais 10 até acertar. Este ano o filme não se pode repetir, mas a ameaça paira e o tempo não tem botão de pausa.
Estúpidas consultas, cada nova tentativa é um novo inferno, não cruzes os braços, ele percebe que estás na defensiva, não escondas nada, se é para ser é para ser, não ocultes nenhum pormenor, nem mesmo os mais insanos, é por estares insana que estás aqui. Não chores, porra, estás sempre a chorar, ele vai pensar que te estás a fazer de vítima, vai pensar que estás a fazer-te de vítima para levares as drogas mais potentes. Tens de lhe dizer que esperaste 6 anos para tomar este passo precisamente porque não querias precisar de drogas, é importante que ele saiba disso. Faz-te perguntas armadilhadas, perdes o fio à meada, ultimamente perdes sempre o fio à meada, baralhas-te, tens a distinta sensação que ele pensa que estás a mentir. A outra disse que era grave, perguntas-lhe também, nem sabendo bem se preferes ouvir um sim ou um não. Ele olha para as tuas pestanas e diz que lhe parece moderada, porque se fosse grave não te levantavas da cama, não irias fazer as pestanas, provavelmente já terias arrancado as originais. Ele não sabe dos pratos debaixo da cama, mas essa parte não lhe contaste, "tudo mesmo tudo" não inclui os pratos debaixo da cama.
Quando finalmente já paraste de chorar, revives o momento e a voz do homem que fuma no gabinete ressoa dentro da tua cabeça: "não me leve a mal ser tão direto, mas eu acho que você precisa mesmo é de ser amada". Tens as pálpebras pesadas, as pestanas tão falsas como a tua felicidade coladas umas às outras, reviradas, traduzindo pela primeira vez como te sentes por dentro. No shit, Sherlock.
O teu diagnóstico não é esquizofrenia. Mesmo que às vezes te pareça que nada é real, mesmo que
às vezes te pareça estares no Truman Show (mas quem teria interesse em ver, sendo tu a protagonista?), não lhe podes dizer que sabes que estás amaldiçoada, porque aí ele ou te declara doida ou burra, e não sabes qual delas a pior.


Não basta estares onde estás, olhando sem querer olhar cada sósia ou quase sósia que passa, tendo palpitações e suando em bica ("não, estou bem, só está muito calor), ironicamente (sabes o que era irónico, oh deus? Parares com estas ironias de terceira!), a conversa com o novo-que-não-chegará-a-sê-lo toma um rumo inesperado, apercebes-te que a história se repete, claro, mas é claro, mais um, mais do mesmo, irritas-te embora já o esperasses, mas se há uma certeza na tua vida previsível é a de que não vais passar por isso uma terceira vez, não sobrevives, se o teu destino é que ninguém tenha o coração livre para ti então ficarás sozinha, tu até gostas, estás apenas farta da falta de originalidade, (ó boy, arranja outro rebound, eu nunca mais o serei a menos que me enganem muito bem e tu nem tentaste disfarçar (bem), portanto obrigada pela poupança de tempo, que já há muito que não estava em promoção).

Dás por ti em modo auto-destrutivo novamente, pegas no carro, aumentas o volume, pouco a pouco, só até estar suficientemente alto para quase calar as vozes na tua cabeça, dás por ti a caminho do casino a 140 à hora, quase falhas uma curva com indicação de 60, estás cega, cega de raiva, cega de frustração, entras com um sorriso desafiador, apetece-te perder o dinheiro todo, ao mesmo tempo apetece-te ganhar o suficiente para te enfiares num avião qualquer (é assim que sabes que estás no fundo, quando a ideia de voar nem te mete medo) e desaparecer. Só desaparecer. Interrogas-te se estarás a ser desnecessariamente dramática ao pensar que ninguém ficará realmente triste e chegas à conclusão que não. Perdidos porque precisam de ti? Certamente. Arrasados por TI? Não. Perdes quase tudo mas no último minuto recuperas um bom bocado, vens embora porque tens fome, são 22h e não comes desde o meio-dia, sentes-te melhor durante meio segundo ao recordar as vezes que todos os dias te têm dito "estás tão mais magra", ficas ainda pior porque isso nunca antes te deixaria tão indiferente, compras uma garrafa de vinho, a última durante pelo menos 6 semanas (atreves-te a pensar que este funcionará, ou fias-te na quase certeza de que seguirá o molde do último, porque nada que sirva para te deixar mais feliz poderá alguma vez funcionar?), chegas a casa e começas a seguir diligentemente o conselho que te deram, escreva um diário, escreva como se sente.

Como me sinto? Sinto que me perdi e nunca me vou encontrar, sinto que quero deitar-me em posição fetal e ficar assim para sempre, até que me libertem ou que eu finalmente encontre forças para me libertar. Chega, sr. Dr.?

1 comment:

Sara said...

Oh deus dos fundos dos poços, dos dias em que aceleramos cegas de raiva, cegas de medo, cegas pelas lágrimas que nos correm em cortina enquanto fazemos curva atrás de curva ao triplo da velocidade segura, às 2 da manhã e às escuras, Sintra acima até chegar a algum lugar tão isolado, escuro e inexistente como nós próprias. Fui uma idiota. Fui uma grande idiota em achar que se precisasses ligavas, se tivesses um dia assim ligavas, se quisesses morrer ou tirar a limpo que alguém se importava ligavas. Idiota e amnésica: eu por acaso liguei? Estavas longe e "não podias fazer nada", "só te ia preocupar", tinhas a "tua vida". Desculpas que dizemos a nós próprios, muitas vezes à posteriori porque a verdade é que no momento do fundo do poço só nos lembramos de quem sabemos que não ia querer saber e de como isso dói. Todos os medos se concretizam com toda a nossa fé nesses momentos, e nenhum raio de esperança nos atravessa o pensamento sem um redondo "mas(...)!". Falo por mim, por experiência.
Atenção amiga, não há ponta de "fui idiota por confiar em ti" nesta mensagem. Isto é um mea culpa absoluto de como eu escolhi "dar-te espaço" em vez de enfrentar as minhas próprias inseguranças e falta de energia e tentar descobrir o que perguntar, o que dizer, como ajudar sem desajudar. É mais fácil achar que se precisares ligas, caindo-me a ficha apenas agora de que eu também não ligava a ninguém, e portanto devia ter previsto que tu também não o farias.

Desta tua amiga que não precisa de ti para nada* mas gosta mesmo muito de ti.

* mas podes continuar a fazer-me rebolar a rir com os teus discursos mordazes trademark - a minha qualidade de vida agradece <3