13 June, 2014

Primeiro perseguiu a barata com uma sanha indescritível, um misto de emoção e medo, acertando-lhe finalmente uma paulada que a fez cair no lavatório, abrindo à pressa a torneira com a pressão máxima, e vendo depois a água a subir, o ralo sem abertura suficiente para escoar toda a água à rapidez necessária. A barata tentava nadar, e ele tentava acertar-lhe com o jacto da torneira, submergindo-a temporariamente, e deixando-a suficientemente confusa para perder as forças e se deixar levar, aos círculos, pela força centrífuga que fazia a água ao descer semi-lentamente pelo ralo. Irritou-se com a barata por dar tanta luta. "Deixa-te morrer de uma vez". Noutra altura teria apreciado uma barata combativa, mas não o suficiente para a deixar viver. Apenas o suficiente para lhe dar uma pseudo oportunidade. Para deixar toda a água escoar. E para quando ela pensasse que tinha conseguido, lhe deitar novo jacto de água e sentir o seu desespero por o pesadelo não ter acabado, afinal.
Não lhe dava propriamente prazer, este jogo sádico com a barata. A partir do momento em que ela caía na pia, estava à sua mercê. Nunca iria vencer. Se conseguisse começar a subir levaria nova paulada e ou morreria ou continuaria em jogo. Não tinha qualquer hipótese. Mas não se pode dizer que ele tivesse qualquer prazer no processo todo. Não a torturava, não lhe arrancava as patas todas uma a uma. Simplesmente esperava que ela perdesse as forças. Talvez fosse demasiado cobarde para lhe dar o golpe de misericórdia. Mas não era prazer sádico, isso não.
Pelo contrário, sentia-se completamente anestesiado a partir do momento em que a barata caía dentro da pia. Ela não poderia sobreviver. Era uma praga. Não trazia nada de bom. Era nojenta. E ele ia abrindo e fechando a torneira, vendo-a debater-se, farto do tempo que estava a demorar até ela desistir.

Depois pensou em deus. Ou Deus. E sentiu-se barata. Questionou-se se deus seria assim tão indiferente na altura de o levar. Se o faria com uma chinelada, de choque, à bruta, acidente de carro imperdoável ou coisa que o valha. Ou se ficaria, anestesiado, a vê-lo estrebuchar com um cancro ou equivalente, depois de lhe ter dado uma forte paulada seguida de afogamento, sem hipótese. Questionou-se se teria direito a pedir misericórdia, como criatura inferior, depois de ter sido ele próprio tão pouco misericordioso com uma criatura inferior. Depois fartou-se, bebeu um chá com cheirinho e foi dormir, feliz por ter, aparentemente, uma casa livre de bichos.

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