14 September, 2017

Kindness of a stranger

Acho que tal como há pessoas a usar óculos com lentes cor-de-rosa, há outros de nós cujas lentes vão progressivamente escurecendo, a ponto de já não nos permitirem ver nada que não seja escandalosamente brilhante. E como as coisas de maior contraste, essas coisas escandalosamente brilhantes, são ou muito boas ou horrivelmente más, as que mais se destacam no cinzento dos dias, é só isso que nos entra pelos olhos.

O principal problema é que as coisas horrivelmente más são muito mais do que as coisas muito boas, ou pelo menos assim nos parece, talvez por nos passarmos a focar cada vez mais nelas, como as falhas no pavimento que eu tentava evitar por pura superstição, e ainda hoje tento, de vez em quando. Quanto mais coisas más já vimos, mais parecemos ver, e mais frequentes se tornam. Não é só o telejornal, e a fome, e o racismo, e o terrorismo, e os desastres naturais. São as insignificâncias do dia-a-dia: o homem que não nos cede a vez na fila do supermercado quando só temos na mão uma lata de atum, a besta quadrada que vai exatamente no meio da estrada, entre as duas faixas, a criatura sem consideração que paga 20 contas no multibanco, e leva o seu doce tempo, sem se importar minimamente com a fila de gente a bufar que aumenta atrás de si. É o cinismo, o "me, me, me!", a falta de humanidade e de civismo crescentes. Principalmente se não nos ensinaram o "me, me, me", e se de alguma forma nos ensinaram, ainda que sem querer, que nós não só não estamos em primeiro, estamos em último, e nós queremos mudar a ordem, queremos fazer uma ultrapassagem, mas temos medo de já sermos demasiado velhos, demasiado formatados, para saber como.

São coisinhas, pequenas chatices do dia-a-dia, mas quando não são intercortadas por nada de bom, dias e dias a fio, e quando a cada ano que passa a vida nos encurta um pouco mais o fusível, começamos a assustar-nos porque a dinamite já não está a uma distància segura, e quando cerramos os pulsos com os gritos das crianças, a ideia de voltar a ver a cores parece cada vez mais distante, e a explosão irreversível da nossa sanidade começa a parecer um dado adquirido.

Nos filmes, o protagonista passa geralmente por uma série de tribulações, mas depois há um momento-chave, em que se lhe abrem os olhos para a beleza do mundo novamente, seja através de que veículo for. Tal deveria acontecer também com as pessoas, é este o problema de pessoas como nós, o de achar que "deve" haver justiça no mundo. Não deve, não "tem de", e por vezes o protagonista sofre horrores, e de repente "pum", morre. Não recebe nunca a felicidade merecida. Merecida porquê? Porque sofreu? Quem sou eu, quem somos nós, para exigir esse tipo de retribuição? Mais, quanto mais nos revoltamos com o nosso sofrimento, parece que mais longe ficamos de sair dele, porque os deuses gostam de assistir à tragicomédia.

Eu não sou o tipo de pessoa que está a ter um dia mau e de repente surge algo que me faz acreditar na bondade humana e torna as lentes dos meus óculos mais claras. Eu sou o tipo de pessoa que secretamente espera que isso aconteça (não sou assim tão pessimista como me creêm, e essa é talvez a razão de ainda não ter desistido, quando teria todas as razões para o fazer), mas depois o dia vai de mal a pior, as pessoas vão de irritantes a autênticas bestas, e não surge nenhum anjo disfarçado para me dar uma mão ou um abraço.

Por isso é que o dia de hoje precisa de ficar guardado, nem que seja só aqui, só para mim. Porque hoje senti finalmente aquilo a que chamam "kindness of a stranger" (não foi a primeira vez, mas a última foi há tanto tempo que quase duvido que tenha de facto existido). Hoje, no momento em que mais precisava, no momento em que estava prestes a quebrar, no último segundo antes da detonação, estes dois "strangers" foram para comigo mais amigos do que qualquer um a quem chamo amigo o tem sido nestes últimos tempos (é, de facto, uma seca, estar perto de alguém que nunca está feliz, eu entendo... não dói menos por isso). Não o torna menos importante o facto de ter precisado da validação de estranhos, não lhe tira o significado por isso, mas numa pequena conversa, revitalizaram uma parte de mim que tinha entrado em coma, fizeram-me perceber algo que quero (mas não quero), para o meu futuro, e fizeram-me sentir... querida. Em vez de invisível ou merecedora de todo e qualquer ataque, porque é assim que tem de ser. Estou-lhes eternamente grata, mesmo que daqui a um ano a minha memória doente já não tenha espaço para eles, e espero que algo de bom lhes aconteça pelo bem que me fizeram hoje. Sou supersticiosa (e já aprendi a não falar antes de ter certezas, as possíveis), por isso não vou sequer atrever-me a pensar nisso até que possa ser materializável. Mas mantenho naquela gaveta aquele cartão. Talvez nunca ligue para aquele número. Talvez ligue e ninguém atenda. Talvez atendam e nada aconteça. Mas talvez, um talvez quase inaudível... Talvez.

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