04 July, 2014

Não desejo a ninguém o peso de só ter uma pessoa no Mundo. E principalmente não desejo a ninguém (principalmente a mim própria) o peso de perder a única pessoa que se tem no Mundo.
Não é exagero. Não é drama. Eu só tenho, literalmente, uma pessoa no Mundo.

E ao fim de anos passados a telefonar obsessivamente, de lágrima ao canto do olho e diálogo interno aos gritos "CALMA CALMA CALMA" porque era meia-noite e ele ainda não tinha chegado, mas depois ia chegando sempre, eu aprendi a relativizar as coisas. Não é fácil ter uma pessoa no Mundo, e menos fácil é quando essa pessoa tem quase 80 anos. As coisas que podem correr mal são infinitas, e resta-me imaginar como será, e se será, daqui a um ano, dois, cinco?
Mas até hoje ele chegava sempre, e ou não tinha bateria, ou era demasiado nabo para saber atender o telefone, ou estava com a namorada nova (e isto é recente, que eu não o tenho como player, nunca foi, é-o um  bocadinho de nada se calhar agora, dá-me uma piada dos diabos, nunca é tarde aparentemente, mas também se é só uma não é player, é pessoa, gosta de companhia, como toda a gente, ao contrário do bicho do mato que lhe calhou por filha).

Mas tarde ou cedo, o carro estacionava sempre, a preocupação passava a irritação, toma-te! onde andaste tu tantas horas sem te dignares a dizer nada? Quase que gritava com ele, às vezes gritava mesmo, mas que falta de respeito, custava muito ligares a dizer que ias chegar tarde? Os papéis invertiam-se.  Filho és, pai serás. Às vezes pai de pai, é a paga pelos tempos em que ia à minha procura pela baixa, e eu o via através de uma rua transversal, corria para casa e me trancava no quarto cheia de medo. Abusando do poder, mas mais inocente e criança do que ele imaginava, talvez.

Hoje lá liguei outra vez, sentindo-me chata como sempre. Está tudo bem? Não, hospital, incoerências, tosses e sangues, o quê? Não sei, não sei de nada. Sempre vi toda a gente a falar casualmente dos pais, tios, primos, amantes no hospital com algo terrível. Sobrevivem sempre. Acho que é esse o truque. Como se não fosse nada. Eu, que me desunho, e toda eu tremo, e penso em coisas que não quero pensar, tenho apanhado quase sempre o pior desfecho. Não digo que os outros sejam insensíveis, mas há diferenças, há. Sei que tenho de levar como se nada fosse. Mas como, se é a minha única pessoa? Não me interessa que tenha 78 ou 100. É a minha única pessoa. Quando grito com ele, é por isso mesmo. Nem penses em deixar-me. Não quero saber.

Not yet, dad.

Not yet.

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